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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Quis te escrever pra explicar que, apesar de tudo, sou capaz de sentir-ser amor.
E pensei que fosse necessário enfeitar as bordas da minha poesia com desenhos de flores feitas de aquarela pra que a beleza te atingisse e você pudesse entender. Pra te provar que, mesmo apesar de tudo, eu sou capaz de grandes belezas.
Mas quero que você encare essa poesia como um choro. Como se eu te agarrasse as pernas e chorasse com soluços e ar embolado na boca. Quero te falar com a violência de um pássaro. Com a violência da vida. Quero te falar com a violência doce de parir.
Quando eu tinha uns 7 anos, um garoto mais velho me encurralou contra a parede e quis ver o que eu tinha debaixo da calcinha. Talvez eu não tenha entendido esse pedido na hora, mas aprendi eventualmente que os garotos te pedem essas coisas como quem tem direito. Ele, com a confiança e naturalidade herdada do mundo, fez esse pedido sabendo que exercia poder sobre meu corpo pequeno que eu ainda nem conhecia.
Eu, que nem me olhava muito no espelho, que ainda nem entendia direito os limites entre minha carne e o exterior dela, tive que lidar com a ideia de que um outro alguém pensava sobre as coisas que eu tinha debaixo da calcinha.
Nesse dia eu aprendi a tomar um cuidado amargo. Entendi que em mim existia um sentimento ruim de defesa e agressividade e que as vezes eu precisaria usá-lo, por mais desagradável que fosse.
Apesar de tudo, eu sou amor.
Apesar da minha voz de fêmea ser barulho de poeira caindo no mar, e sua voz de homem ser alta e ecoar em todos os ouvidos, eu sei amar.
As vezes ser mulher é ser coisa aos olhos alheios. E, tomando consciência disso, as vezes minha vontade é arrancar esses olhos e alterar com as mãos a forma como eles me enxergam.
As vezes ser mulher é sentir que não importa o quanto você faça e queira, seu corpo não é seu.
As vezes ser mulher é duvidar da própria sanidade porque parece loucura não querer interpretar meu papel de mulher num mundo de homens.
E em todas as vezes ser mulher é ser desconsiderada nas palavras, nos gestos. É não ter propriedade nem conhecimento, por mais que você tenha.
Mas apesar de tudo, eu sei sentir-ser amor. Algumas de nós não sabem. Algumas tantas de nós que foram mutiladas, física e emocionalmente. Algumas tantas de nós que olham homens de corpo aberto e palavra larga, homens que podem, homens que não sabem que podem tanto e homens que nos desejam
mesmo quando não queremos ser desejadas.
Algumas de nós não conseguem mais amar e eu entendo. Porque quando faço arte, vocês me imaginam na cama. Porque quando lavo roupa, vocês me imaginam na cama. Porque quando vou ao médico, faço compras, dou risada, como uma pizza, vocês me imaginam na cama. Quando vivo minha vida normal de ser humano que sou, vocês me imaginam na cama. É pra isso que sirvo.
Mas apesar de tudo, apesar de tudo, apesar de tudo, eu amo. Eu sou resiliente e amo.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

nas horas que o sol alcança uma luminosidade perigosa, nas horas perigosas do dia, nos pesamentos perigosos
a poesia mora. a poesia mora em todas as ocasiões. na banalidade das tardes amenas
e onde a guerra faz corpos deitarem mortos nas ruas.
nos lugares fedidos, nas pessoas fedidas
a poesia mora onde a gente não acha que ela poderia morar por só vermos o feio - mas a poesia mora mais no feio
ela mora nas listas, nas barbas, na tristeza, na falta de nobreza
poesia não é nobre, nem a poeta
o único lugar onde não mora poesia é no mar
ele não precisa

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

conheço uma mulher muito velha. ela está numa idade da vida que não consegue falar mais nada sem filosofar. abre a boca careca de dentes e vai soltando umas palavras que são na verdade dúvidas, e divaga sobre viver e reclama das dores do corpo velho. acho que ela filosofa porque o olho já está enxergando lonjuras, que a gente aqui na juventude ainda não pode enxergar.
ontem ela me disse que quando deita na cama, fica pensando em quem já morreu. disse que fica assim "esse já foi, esse já foi, esse foi também, esse foi..." e que reclama com Deus porque isso não é pensamento bom de por na cabeça dela. aí disse assim "isso é coisa de vivo pensar?"
quando fico perto dela parece que o tempo passa bem devagar. acho que ela altera a forma do tempo passar sugando a velocidade dele pra dentro do corpo velho e gooordo. sugando pra dentro das tranças do cabelo comprido e branco, muito comprido e muito branco.
as vezes ela vai passear no quintal e leva muitos minutos pra chegar até lá. quando chega, conhece todas as ervas, arranca uns hortelãs que eu nem lembrava que estavam lá, e usa pra fazer um chá que não vai tomar.
se essa mulher não existisse, muitas coisas não existiriam. não existiriam os marionetes nem os atores feitos de carne. não existiria hortelã. sítios no interior não existiriam não.
só existiria a velocidade do tempo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Grudado no asfalto reconheço o que um dia pode ter sido um pássaro. Uma das vidas que a velocidade esmagou. A cidade que devora tudo abre sua boca dura dentes de asfalto e mastiga o pássaro.
Transforma-o em mancha onde não se reconhece sangue ou ossos. Se ele tivesse mil vidas, teria morrido mil vezes.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

73

Isabel tinha a boca mais suja que uma menina podia ter em 1982. Era engraçado porque ela era pequena e fofa, e quando xingava os homens da rua com aquelas palavras, ninguém nunca estava esperando. Ela falava as palavras de um jeito, que parecia que antes delas chegarem na boca dela tinham passado pelas tripas dos peixes mais podres e pelo cu de andarilhos imundos.
Mas era pequena e fofa e por isso era perdoada.
Isabel me acompanhava no processo de virar mulher. Era um caminho dolorido o desabrochar, os seios despontavam, o corpo arrendondava e o suor ficava doce. Nós olhávamos e apalpávamos o corpo da outra, tentando reconhecer-se na pele alheia, trocando figurinhas, minha bunda está maior, você tem espinhas nas costas, acho que tem um caroço no seu peito.
Um caroço no seu peito.
Ela continuou levando a vida como se não soubesse. Não contou pra mãe, não escreveu no diário.
Mas eu sabia. Mais que saber, sentia ainda nos dedos as protuberâncias.
Muito rápido ela ficou doente, e muito rápido a doença acabou. Pra mim, a doença dela foi uma coisa com muita fome, que se alimentava um pouco do corpo e um pouco do espírito, mas a fome não era saciada nunca e então começou a se alimentar de alegria, e ainda não era suficiente então comeu as palavras todas, isabel não xingava mais, mas a fome ainda existia então a doença comeu a juventude e comeu a vida e quando não tinha mais nada, foi procurar outra fonte. Enterraram o que sobrou de Isabel, os cabelos, os dentes, e uma pele que por dentro estava cheia de nada.
Coloquei pra deitar na terra um bilhete com todos os palavrões que aprendi com ela, pro caso dela precisar xingar deus.

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

minha relação contigo nunca foi de necessidade, mas sabia do seu prazer em atender minhas acontecências.
e você sabia do meu.
como na noite em que você me ligou chorando porque encontrou um carrapato no seu braço, e precisava de uma vistoria nos lugares do seu corpo que você não enxergava.
eu ri o caminho inteiro pensando nos seus exageros.
e quando era aniversário do seu gato e eu fiz um bolo pra ele, mas ele cheirou, se espreguiçou e dormiu.
fazíamos pela outra coisas que não precisávamos, até coisas que talvez fosse melhor não fazer, mas encontramos na superficialidade a convergência de vontades.
e pude te amar do melhor amor porque ele não me faria falta quando acabasse.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

volteia todo o pescoço com um cordão feito de
vontade
chega perto de mim pra emanar calor (energia térmica que sai do seu corpo e vem pro meu)
e contenho minha saliva na boca
mesmo que minha vontade seja espalhá-la em você
tiro o cabelo da nuca para que meu cheiro se difunda e te atinja
e você sente
é um jogo

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

para sua selvageria incurável

te escrevo com a ideia semi-inconsciente de que você vai sentir cada palavra, mesmo que minha intenção seja nunca te mostrá-las.
ouço em você uma voz de útero e dentes, que me fala numa língua antiga - que aprendi, parece, bem antes de nascer. uma língua que compreendo através dos músculos, gravada nas células do abdômen.
sinto um chamado na sua fúria (você é fúria e sexo), na sua voracidade, nos seus dentes imensos que me fagocitam sem me tocar.
e nos seus olhos vejo batidas de tambor.
você me afunda na terra

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

deitei a cabeça no peito da noite. ela respirou fundo e abriu as costelas pra que eu me pusesse entre elas
enrosquei os dedos no rio corrente do qual era feito seu cabelo
olhei bem fundo na noite. ela me olhou de volta com milhões de olhos e deu um riso pequeno de quem é infinito
a noite tem barulho de mar bravo

domingo, 14 de agosto de 2016

http://extra.globo.com/casos-de-policia/tres-suspeitos-morrem-em-confronto-com-policia-em-del-castilho-onibus-sao-incendiados-em-protesto-19905325.html

não posso querer explicar nada com palavras que, juntas, não formem poesia
um erro de digitação num jornal online disse que "Às 20h41, a vida foi liberada." depois de um viaduto ser interditado. 
e por um momento fiquei feliz.
os policiais entram na favela e matam crianças que vendiam drogas. 
pessoas de camisa vermelha brigam com pessoas de camisa verde. nossos dedos foram feitos pra colher frutas, pintar coisas, tocar instrumentos, coçar as partes que coçam
ou puxar gatilhos, lançar pedras?
em alguma parte, a mulher de algum policial deve ter na barriga um bebê. 
em alguma parte, dentro do calor úmido do solo deve estar brotando uma semente de uma planta chamada maconha
em alguma parte alheia a tudo isso, um meteoro deve destruir um planeta inteiro

m i l h õ e s
de pedacinhos devem estar se espalhando.
em algum momento algumas partes do meu corpo eram flutuantes viajantes no espaço. por acaso ou por amor elas se encontraram para abrigar minha alma
no mundo existem placas de rua
existem carros
existem baleias
existem crianças que morrem baleadas e homens que escrevem errado nos sites de notícias 
existem pessoas com dores de cabeça e coelhos selvagens que roubam vegetais de pequenas hortas. funk, pantufas, buracos negros, morangos e todas as coisas.
por existir tudo, não existe nada
eu sou um profundo silêncio capaz de amar. eu sou você e eu sou tudo
por eu ser tudo, não sou nada









quarta-feira, 27 de julho de 2016

nós precisaríamos de um mar
fervendo
pra matar os rastros da nossa imprudência
da nossa pele manchada
da nossa cabeça esquecida
e precisaríamos passar dias inteiros
olhando nuvens com afinco e atenção
pra que talvez fosse possível entendermos
como a vida funciona
precisaríamos ainda de longas horas de uma solidão absoluta
sem planos como se fosse férias
para ouvirmos nossas próprias palavras sem que isso fosse insuportável

segunda-feira, 18 de julho de 2016

por trás dos meus olhos, de forma sinestésica, vejo alguém cair.
não, não vejo alguém cair. vejo a queda em si.
em mim.
na boca, nos pulmões e na pele ouço a queda.
concluo que são algumas palavras indo embora.
enquanto escrevo, penso que nunca mais escreverei.
enquanto faço arte, sinto inveja dos que são artistas. enquanto respiro, imagino como é estar viva. enquanto brigo, grito, abro o peito e bato, lamento a falta de força. e quando estou longe de casa penso no dia que irei viajar.
cair tem cheiro e cor

sexta-feira, 1 de julho de 2016

domingo, 19 de junho de 2016

domingo, 19 de junho de 2016

se eu não estivesse com uma leve ressaca, ergueria um copo de vinho por todas as ações certas por motivos errados. beberia muito pra ter a sensação (talvez ilusória) de que minha alma descolou um pouco desse corpo que habito mas não sou.
aí, fecharia o mundo num abraço, absorveria todo o sofrimento tornando-o meu e choraria até que os níveis dos mares subissem.
tudo estaria limpo e ninguém precisaria tomar decisões difíceis, nem passar por processos que dilaceram, tampouco sentir medo.
(pausa. eu queria costurar minha poesia em você. das paredes do seu corpo até o que te escapa. mas minha poesia é feita de dor - e que bordado feio seria pra sua pele linda)

uma hora junho também acaba.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

sempre que chego no portão dessa casa azul e a olho parece-me que ela afundou 3 centímetros. o céu cinza gelado parece uma continuação das suas paredes.
as flores, árvores e arbustos do quintal estão doentes e tristes. as couves que nascem na horta são amargas e não importa quanto adubo doce seja posto na terra, quando a primeira manifestação de planta desponta do solo, contamina-se com nossa estagnação.
quando entro na casa, um ar líquido-denso invade meu corpo e o deixa tão pesado quanto os móveis velhos de madeira rústica que pertenceram antes à sei-lá-quem. subindo o primeiro degrau tenho vontade de chorar.
nada se move.
a madeira range pedindo sol. todos os habitantes se olham secretamente pedindo sol.
ninguém se mexeu desde que saí. todos estão estáticos nos seus sofás, camas e vinhos.
o tempo todo penso em sair daqui. mas sei que nada resistiria a minha partida e a casa afundaria 3 metros em um dia. afundo devagar com ela e torço pra que ninguém perceba os enorme buracos pretos embaixo dos meus olhos, que não amenizam, independente de quantas muitas horas eu durma por dia.
se nada se move, eu tenho medo de tentar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

isso é saudade

você é como um desenho sem contorno. te olhando agora tenho a impressão de que o céu reflete na sua pele. quando você pára em pé diante do mar, vira uma pequena extensão vertical dele. te olhar faz meu olhar dançar, fugir. seu corpo se funde ao teu em-volta, por amor ou escapismo, em limites diluídos. a linha onde seu cabelo toca suas costas parece abrigar vento.
mas te vejo com os olhos enevoados de passado e de coisas que não existem mais. e já é possível ver a semente de medo.
(tua-minha no meu presente ou no teu?)

quinta-feira, 12 de maio de 2016

alimentarei a fogueira que você me preparou.
atirarei ao fogo meu sangue, meus feitiços, meu gritos, meus medos, meu vinho.
resistirei como uma ideia 
resistirei porque sou uma alma que é infinita e indivisível e que também é fogo
sobrará em mim a verdade e meus dentes para que eu possa sorrir e mastigar o medo
e serei desses solos que ficam férteis depois da queimada, porque comerei minhas próprias cinzas e assim crescerei 

terça-feira, 3 de maio de 2016

não sei o dia exato que você foi embora. acho que foi um processo lento, a cada hora um pedacinho bem pequeno seu partia.
nunca recebi uma despedida brusca. quando eu percebi, sua ausência se mostrou comigo, seu lugar vago ainda morno.
nesse dia incerto de ir embora nenhum satélite parou. nenhum pássaro morreu por isso. a chuva não caiu diferente. as coisas do céu permaneceram no céu. as coisas do chão ainda eram as coisas do chão.
eu permaneci acima do chão. nunca fui um castelo de cartas como nós talvez pensássemos, porque o vento bateu forte e eu permaneci.
eu te amo.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

eu queria saber se o mar sabe de si próprio.
se eu fosse o mar, escreveria, com pequenas ondas, poesias sobre os seres que vivem em mim. descreveria a sensação de envolver as pessoas, roubar a temperatura de seus corpos. saberia que sou grande e assustador e devoraria embarcações lotadas, mas por amor.
rugiria como a ferocidade pura e líquida que sou. rugiria a noite inteira. me atiraria contra as pedras com uma violência doce. e seria o útero das sereias. seria o chão das gaivotas.
talvez não soubesse, mas sentiria que inspiro e acalmo.
eu saberia, se fosse o mar, que as lágrimas das pessoas são pequenas células de mim.
você me lê?
ontem li que a vida é um sonho e por um décimo de um milionésimo de um micro segundo, acordei.
foi um momento tão pequeno que nem deu tempo de nascer em mim a vontade de segurá-lo. tão pequeno que nem sei se foi real.
foi minha vida, essa vida, condensada.
risquei meus braços para que não me esquecesse VOCÊ ESTÁ SONHANDO
mas esqueci, e estou esquecida ainda agora.
deus me lê?

domingo, 1 de maio de 2016

29 de abril de 2016

Essa sou eu, com 20 anos. É fim de abril de 2016.
Esse é meu rosto sem maquiagem, sem correção digital e talvez um pouco de ângulo que favorece. Esse é meu cabelo sem progressiva, chapinha, escova. Não estou nua porque está muito frio. Estou suja. No meu quarto, na casa dos meus pais. Tenho andado infeliz com o meu corpo. Desconectada de mim. Cozinho muito bem e cada vez melhor. Sinto-me sozinha. Alimento sentimentos ruins por outras pessoas. Estou apaixonada pelo mesmo cara e insegura em relação a isso.
Essa sou eu, com 20 anos. Eu fui presa por roubar um livro e tenho medo que meus pais descubram. Tenho dado menos voz à minha sensibilidade (ou a tenho perdido). Sinto inveja. Sinto saudades de quem eu achava que era. Crio projeções mais do que nunca. Sou desorganizada. Não encontro emprego. As vezes sinto que vou explodir. Culpo as pessoas por coisas que eu me inflijo. Perdi amigos.
Essa sou eu, com 20 anos. Minha avó morreu no começo do mês, e eu fiquei mais triste do que achei que ficaria. Tenho medo da velhice. Tenho mil vacinas atrasadas para dar na minha gata. Ela também toma menos banhos do que deveria. Minha relação com os meus pais é pesada e me fez buscar terapia. Sinto-me torta. Gosto muito de mim. Identifico-me com isso. Gasto meu dinheiro em comida e futilidades. Em mim tem muito amor e ele cresce.

Essa sou eu, com 20 anos. Eu não sinto que conseguir cuspir sinceridade. Esses são alguns dos meus problemas de intimidade. Essa sou eu tentando me expor.

junho de 2015

essa sou eu, com 19 anos. esse é meu rosto. sem maquiagem, sem correção digital, sem ângulo que favorece. esse é meu cabelo, sem chapinha, escova, progressiva. estou nua. é junho de 2015.
esse é meu quarto. eu moro com meus pais. eu não sabia que dia era hoje até agora, quando olhei. também não tinha certeza do mês.
essa sou eu, com 19 anos. eu tenho problemas e sou insegura. eu choro. eu sou adorável e dócil. estou triste. eu minto muito principalmente pra mim. eu sou egocêntrica e julgo as pessoas. eu tirei essa foto mais de uma vez porque achei feia. eu me olho no espelho várias vezes ao dia. eu faço as sobrancelhas. eu faço sexo. eu sou hipócrita. eu esqueço as coisas mais do que é aceitável. eu minto para os meus pais. eu ligo pra opinião alheia. eu sou vegana mas comi um biscoito amanteigado hoje. eu finjo que estou sempre bem. eu tenho seios lindos. eu gasto meu dinheiro em comida, cerveja, incenso e maconha.
essa sou eu, com 19 anos. eu não sigo os meus conselhos. eu sou poligâmica mas tenho ciúmes. eu tenho perdido o interesse em homens e encontrado em mulheres. eu estou apaixonada por um homem. eu reprimo sentimentos. eu tenho medo de tudo. eu sou gentil. meu cabelo tem cheiro bom. eu falo pras pessoas meditarem mas raramente medito. essa sou eu, com 19 anos. esses são meus problemas de intimidade. essa sou eu tentando me expor. "ainda não estamos habituados ao mundo. nascer é muito comprido."

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Não me senti capaz de englobar a cidade entre as pernas por ter um passo muito curto. Empurrava o chão e parecia brincadeira. Poucos centímetros de asfalto ficavam atrás de mim, quilômetros de prédios acima, engolindo o céu, engolindo a mim. Mas minha pressa é pequena e minha vontade ofusca os faróis e postes. Minha vontade me faria engolir a fumaça e brotar dela coisas lindas. Rasgaria o asfalto e embaixo dele a terra seria vermelha, e as sementes acordariam. Minha vontade adoçaria as frutas, curaria as mulheres. Os prédios ruiriam com violência e calma. Os presidentes ficariam nus. Minha vontade correria a cidade com tamanha velocidade que as pessoas julgariam se tratar de um dilúvio, e teriam medo de morrer (não morreriam). Aqueceria as bocas dos que falam com frieza. Minha vontade seria uma parede forte, grande, imensa, contra a qual as palavras de ódio bateriam e virariam nada. A água dos rios cinzas viraria espelho e a limpeza para nossa vergonha. As raízes quebrariam as calçadas. Minha vontade faria chover um dia inteiro pra que ninguém e nada saísse seco. Minha vontade é a carne viva do mundo.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

a vida é um desenrolar suave, balança, muito precisa
a mente pede coragem, fogo, entretanto calma
quando as pessoas ficam é odioso mas quando vão embora é pior
e sempre que choro fica evidente que os seres fazem o que querem, e eu faço o que quiser com o que me foi feito (se é que algo já me foi feito por alguém que não eu)
e tento ser amor, coragem, feliz
e consigo
mas também me sou só, e não sei como não ser
não sei ser par, trio, grupo. só sei ser eu
ou ser tudo
e peço desculpas pelo casulo jogado no mundo que me fiz. amor

sexta-feira, 1 de abril de 2016

enquanto nós, o mundo, nos ocupávamos das coisas mais banais, vivendo com a certeza de que viveríamos também o dia seguinte, você dormia. dormia um sono afogado. um sono de quem não tem opção senão dormir. sono mal oxigenado por conta das células doentes cancerosas.
você dormia um sono induzido por remédios. sono que escolheram pra você, numa cama que fizeram pra você, num lugar onde só se diz tchau.
me ligaram, interrompendo minhas banalidades, pra que eu pudesse dizer tchau. cheguei tarde demais porque o remédio já atingira seu sistema nervoso e você já não ouvia mais nada.
voltei pra casa e te deixei dormir, com aquela respiração assombrosa de dificuldade existente.
dormi meu sono normal numa cama feita por mim, e sonhei.
ao meio dia em ponto, você morreu. eu estava no mercado e só pensava em morte. em como a vida pode seguir em ocupações cotidianas, como comprar comida, cozinhar sopas, limpar a menstruação que pingou no chão do banheiro, enquanto pessoas faziam a coisa mais extracotidiana que é morrer. pensei se não deveríamos fazer coisas loucas e estranhas o tempo todo pra que morrer não fosse tão estranho assim. pensei na velhice
em ficar sozinha
deixar pessoas sozinhas
na senilidade quase nada lúcida
e chorei porque não acredito na morte mas que ela existe, existe

sábado, 19 de março de 2016

AMOR* sinto por todos e tudo. mas aqui a palavra é outra

de tanto gastar a inspiração tirando-a do afeto verdadeiro que sinto
pensei em inventar pessoa que não existe e amá-la com um amor urgente, tanto que dele precisaria escrever
ou inventar por alguém, que já existe, um afeto que não sinto
mas que perigoso seria se eu pudesse acabar amando* alguém que não conquistou amor* nenhum
ainda mais porque me fazer amar alguns seria fácil, fácil
de qualquer forma correrei sempre pra parte líquida da coisa
contendo a dúvida
aparar
pra parar em algum lugar
preparar (a descontenção)

segunda-feira, 14 de março de 2016

caminhei hoje tentando ver as coisas com um susto que perdi.
caminhei por ruas que já decorei, fingindo que não conhecia cada paralelepípedo.
olhei-me com a distância dos anos; flertando com meninos tão jovens quanto eu, sem dinheiro, e quando o tinha gastava em enfeites de cabelo. olhei pra mim quando caminhava absorvendo a cidade com os olhos arregalados, esperando coisas maravilhosas acontecerem, tomando banhos de chuva sem atentar para os olhares maliciosos de homens pedófilos que sorriam pra mim e eu achava que era gentileza.
e tinha frescor nos olhos. tentei esquecer metade das coisas que sei. recuperar a surpresa dos toques. olhar a vida como um tapete longo imaculado ao qual eu não seria capaz de enxergar um fim. ser brotinho.
susto muito delicioso

terça-feira, 8 de março de 2016

se eu pudesse cavar até o fundo desse lugar subjetivo e plantar fluidez de barco
e roubar as coisas que você nunca falou, mas pensou, e os impulsos que você controlou, mas existiam
e assistir como quem assiste de cima todas as vezes que quis me beijar
se eu pudesse, me faria fósforo e incendiaria sua casa, seu cabelo. incendiaria com um fogo que queima mas não machuca
ou te machucaria com um ferimento que dói mas não sofre
e falaria absurdos e burrices sem medo e seria preguiçosa e sem vergonha
se eu pudesse voltar no dia que te conheci eu faria cair água do céu. tanta água que talvez nos afogássemos
se eu pudesse faria você esquecer das respostas pras minhas dúvidas, pra que eu pudesse perguntá-las e, uma vez ao menos, ouvir "não sei"
eu queria mesmo escalar o mais alto de quem você é quando não está pensando em nada
e saber as coisas que você quer evitar mesmo que eu te odiasse
se eu pudesse te espalhar em mim como tinta, eu faria uma bagunça
viraria todos os potes das suas cores pela sala
misturaria as cores, jogaria na parede, me esfregaria nelas
colocaria uma cor em cada mão e bateria palmas
depois beijaria os respingos

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Descobri que você existia (ou entrava em processo de começar a existir) no banheiro do meu bar favorito. Vi dois traços rosas no teste de farmácia e pensei que estivesse enxergando duplicado. Abri a porta e perguntei para a estranha que era a próxima da fila a quantia exata de traços rosas. Dois traços rosas, ela disse, dois.
Saí do banheiro cambaleando de bêbada e de grávida. Não deixava-me esbarrar em ninguém porque me senti tão preciosa. Como um ovo de cristal bem fino que pudesse quebrar e espalhar toda a placenta e líquido amniótico pelo bar, e eu, quebrada, veria um pequeno bebezinho flutuando na cerveja e sangue do chão, escorrendo devagar, e o dono do bar ficaria tão bravo. Eu preciosa, receptáculo frágil, tão mais sagrada do que eu mesma sabia, andando entre pessoas cheias de braços, prontas para me tocar a qualquer momento. Nos olhos delas eu via linhas rosas claro, duas, finas, aparecendo devagar, dizendo sim, grávida, sim, duas linhas, sim, bebê, ou sim, aborto. Andei como quem paira até a saída, pisando leve pra não machucar, com o teste e as linhas na mão, pingando xixi, me sentindo cheia de outro corpo.
Sentei na calçada. Levantei rápido quando lembrei que ela estava suja demais para alguém que agora era tão preciosa como eu. Fiquei em pé na rua pensando no colo do meu útero abrindo, abrindo, até ficar grande o suficiente pra dar passagem pra sua cabeça, que chegaria à minha vagina e deslizaria para o mundo. Para uma vida extrauterina que você não pediu, mas eu, teu carrasco, tua mãe, te dei. Pega essa vida, bebê. Sai do quentinho e do bom. Respira esse ar que todo mundo já respirou. O cordão eu romperia com violência, quem sabe até com os dentes, pra dizer "olha, bebê, agora é cada um por si."
Me imaginei olhando seu rosto. Me perguntei se eu te amaria logo. Ou se eu te veria como um pedaço das minhas entranhas. Ou se eu te veria como um parasita que passou os últimos meses comendo minhas entranhas. E se você me amaria.
Então pensei em te interromper. Ter uma conversa franca contigo e dizer "bebê, você não pode nascer. Vou tomar esse comprimido e vou interromper o que você está fazendo aí. Mas vai ficar tudo bem porque você não tem alma ainda." e terminar o seu processo que, eu sei, você estava se empenhando tanto, trabalhando duro mesmo pra existir.
Optei pela segunda história.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

eu me celebro

eu não sou auto-imune. eu me respeito.
eu aceito as receitas que eu erro. eu aceito as hipocrisias que não combato. eu me celebro, eu me respeito, eu me aceito.
eu enfeito meu corpo, passo tinta nos olhos, penduro coisas no pescoço, faço furos e coloco adornos. não pra esconder mas pra celebrar. eu sou a minha festa. meu corpo é meu relicário. meu objeto de ritual.
eu escuto meus órgãos. escuto o sussurro do sangue correndo.
eu me perdoo. eu não reprimo.
eu sou maior que o sol. eu ocupo toda a sala. eu sou todas as coisas. eu vibro. eu absorvo.
eu me desenho. eu vejo meu sangue pingar. eu tenho sangue.
eu celebro o que sou.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

de olhos fechados sinto olheiras se formarem como gigantescos entalhes escuros na superfície de mim. entra pela janela (ou pelas ondas do celular) um sentimento disfarçado de preocupação.
não gosto que me escancarem.

.


continuo sensível porque estou muito viva.

domingo, 3 de janeiro de 2016

sou mulher e da minha mulherice experimento a solidão.
e espalho pelas minhas relações a inevitável sina
observo os cachorros de rua: machos alegres de rabos que se movem e passos lépidos
fêmeas tristes
tetas cheias
as vezes penso que uso as pessoas. que devia protegê-las das minhas vontades que mudam tão rápido 
já que ninguém devia ser exposto assim a marés bravas piscianas 
mas não seria lá muito justo comigo aprisionar minhas ondas
solitárias ondas de mulher